Para um retrato de um possível mercado editorial do romance em questão a partir da base de dados aqui reunida, elegemos dois critérios fundamentais porque eles são suficientemente abrangentes para garantir que a diversidade e as variações que aparecerem na circunscrição que fazem se transforme em informação para análise. São eles:
1) Centralização da ditadura nos enredos
Interessam-nos romances que centralizam a representação do período da ditadura militar de 1964 em seus enredos. É o que acontece, por exemplo, com K. relato de uma busca, de Bernardo Kucinski, ou com Palavras cruzadas, de Guiomar Grammont.
Mas isso não significa que o tema da ditadura militar precise estar constantemente explicitado nas narrativas, como está naqueles exemplos. No entanto, essa representação precisa figurar como engrenagem da narrativa, como o que ocorre em Outros cantos, de Maria Valéria Rezende, ou em De mim já nem se lembra, de Luiz Ruffato.
Não estamos considerando, portanto, os romances que têm a ditadura militar como mero pano de fundo, isso é, cuja narrativa aconteça tendo o regime militar apenas como uma delimitação temporal ou que faça curta menção ao período sem que ele seja determinante para o transcorrer dos fatos que dão forma ao enredo.
2) Ser publicado a partir dos anos 2000
Este critério temporal é derivado de uma divisão que, por exemplo, está presente em A literatura como arquivo da ditadura brasileira, de Eurídice Figueiredo[i], em que vemos a literatura sobre a ditadura didaticamente sistematizada em três momentos diferentes de publicação: da década de 1960 a 1980, da década de 1980 a 2000 e dos anos 2000 até hoje.
Para Regina Dalcastagnè[ii], em aula aberta recém-ministrada ao grupo de estudos da PUC-SP intitulado “Literatura e ditaduras”, naquele primeiro período se produziu uma literatura com urgência e necessidade de denunciar as agruras do regime. Este foi um momento em que havia a necessidade de se nutrir a ilusão de que a literatura, como ato de resistência, poderia ajudar a salvar os que corriam perigo nas mãos do Estado. Também por isso Figueiredo menciona que essa primeira fase tenha sido de utopias. Mas ela também já considera a existência, nessa literatura, de um olhar sobre os fracassos do projeto utópico pelo viés das distopias.
Já o segundo período, marcado pelo retorno dos exilados, é caracterizado, sobretudo, por uma literatura produzida pelos ex-presos políticos, anistiados, pelos que puderam sair da clandestinidade, pelos que sobreviveram à ditadura. Em geral, como demonstra Figueiredo no livro acima mencionado, este é um período de maior produção memorialística e autobiográfica. Para Dalcastagnè, em fala já citada, com o passar das décadas de 1980 e 1990, a tematização literária da ditadura começa a se direcionar para uma certa estagnação.
No terceiro momento dessa literatura, para Dalcastagnè, volta a aparecer na cena da literatura brasileira uma produção bastante extensa sobre a ditadura. Já conforme Figueiredo, desde o ano de 2014 (e nos anos seguintes) é possível perceber um grande número dessas publicações em circulação.
O que nos parece, à primeira vista, é que o reaquecimento do tema do golpe de 1964 não se dá à toa, mas dentro de um conjunto de circunstâncias correlacionadas que enseja rediscutir o tópico. Rediscussão que se dá, majoritariamente, por uma imprescindibilidade de denúncia do esquecimento; por uma necessidade de se publicizar o apagamento interessado e político da história promovido pela Lei da Anistia; por um carecimento de mínima restituição aos assassinados, aos sobreviventes e suas famílias; assim como por uma reação de resistência ao pensamento que foi gestado ao menos desde as movimentações de junho de 2013 e que culminaram no Golpe de 2016 e no bolsonarismo de então.
A literatura dos anos da ditadura, assim como do período de redemocratização, possui considerável fortuna crítica. Agora, há um conhecimento sendo construído sobre os romances recentes que trazem a ditadura em seus enredos. Esse conhecimento, apesar de todas as dificuldades subjacentes ao gesto de se refletir sobre o presente, tenta dar conta de explicações possíveis para essa produção significativa de romances recentes que retomam a ditadura militar de 1964.
Pensamos que entender uma obra ou um conjunto delas é também entender as circunstâncias que circunscrevem o momento da criação e os fatores que ensejam sua maior ou menor circulação. Por isso a nossa explicação tenta buscar um entendimento do contexto de produção das obras do terceiro momento, uma vez que as características do mercado editorial do romance em questão e essa conjuntura são interdependentes e influem sobre a produção literária. O mercado é afetado pelas circunstâncias político-econômicas e estas por ele, sendo o comércio de livros regulado dentro dessa relação. E a criação literária não acontece isolada desse sistema, senão que, para retomar Jauss[iii] em sua aula inaugural, integrada ao horizonte de expectativas do tempo de produção e dos tempos de recepção.
Esse critério, então, delimita nosso interesse em tentar contribuir com as perspectivas e estudos pré-existentes que tentam dar conta desse fluxo renovado de publicações que trazem o golpe de 1964 novamente à literatura a partir do que pode nos dizer uma análise do mercado editorial que é parte de sua produção e os coloca em circulação na sociedade atual.
Tendo apresentado brevemente nossos principais critérios norteadores da organização das informações aqui reunidas, é preciso ressaltar que mais informações detalhadas sobre parâmetros e metodologia podem ser encontradas na tese de que este Observatório é o ponto de partida, quando ela for publicada.
E se você acha que algum dos romances listados neste Observatório não atendem algum desses critérios; ou, ainda, se você conhece algum romance que atende a esses critérios e que não foi listado, sinta-se à vontade para nos enviar uma mensagem. Como consta em nossa página principal, o Observatório estará em constante (re)construção coletiva.
[i] FIGUEIREDO, Eurídice. A literatura como arquivo da ditadura brasileira. Rio de Janeiro, 7 Letras, 2017.
[ii] DALCASTAGNÈ, Regina. Aula aberta: a ditadura escrita e vivenciada pelas mulheres. Youtube. 1 vídeo (101 min). Publicado pelo canal Literatura PUC-SP, 2022. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=znUweE9V3OY&ab_channel=LiteraturaPUC-SP> Acesso em: 12 set. 2022.
[iii] JAUSS, Hans R. A história da literatura como provocação à teoria literária. São Paulo, Ática, 1994.
Júlia de Mello – mestre e doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da UFSCar, bacharel e licenciada em letras pela Unifal-MG.
CC Júlia de Mello – Núcleo Interdisciplinar Literatura e Sociedade – Unidade Especial de Informação e Memória – Universidade Federal de São Carlos – FAPESP (2019/03937-0)