Esse mapeamento nasceu da curiosidade de se ter em conta a quantidade de romances que vinham sendo publicados nos últimos anos e que evocavam a história da ditadura militar de 1964 no Brasil.
De uma reunião intuitiva dessas obras, surgiu um banco de dados que ensejou os questionamentos que nos levaram à proposição da pesquisa que estamos desenvolvendo ao longo do doutorado.
Assim, os metadados utilizados para análise das informações reunidas delineiam os pontos de partida para essa pesquisa específica. Isso não exclui a possibilidade de que nossos dados possam ser rearranjados e manejados por meio de outros metadados de modo a servir de origem para outros trabalhos.
Dito isso, este observatório, que configura uma vista parcial do romance brasileiro pós-ditatorial contemporâneo apresenta:
1) os romances publicados, seus autores e editoras;
2) a evolução dessas publicações ao longo dos anos 2000;
3) um delineamento do perfil dos escritores (sexo, geração, e região do Brasil a que pertencem);
4) um esboço para um possível retrato das editoras que estão publicando esses romances (sua concentração regional, a quantidade de romances que publicaram com esse tema e suas premiações).
Por que esses metadados e não outros?
Estamos interessados em tentar entender como o mercado editorial, enquanto parte de um sistema mercadológico maior, capitalista pós-industrial, tem cooptado e rasurado discursos como uma das formas de configuração do “polissistema literário”¹ e as influências disso sobre a constituição do discurso ficcional, principalmente sobre a ficção de nosso corpus.
Importa-nos pensar sobre os modos de agência do mercado e do mercado editorial brasileiros em relação ao tema da ditadura militar de 1964 e suas consequências para o estatuto da ficção brasileira recente, especificamente a de nosso corpus, em face da quantidade de romances com esse tema publicados sobretudo desde 2014.
Os horizontes de expectativa de uma época atravessam sujeitos e suas produções que, no caso da literatura, não só determinam sua materialização e circulação como tem alguns de seus elementos constituindo a realidade interna das obras. Considerando-se isso, o que intentamos refletir não pode ser matéria de ponderação e análise sem se atentar para o contexto político do período circunscrito, as pautas sociais em circulação, os movimentos sociais que as reclamaram e as respostas do establishment ante tudo isso. O que é da ordem do vivido tem influência direta e indireta na criação literária, nas escolhas editoriais e nas leituras em cada tempo e espaço.
Com o governo petista que esteve no poder entre 2003 e 2016 no Brasil, a preocupação com as classes economicamente desfavorecidas e com os grupos sociais minorizados passou a integrar a agenda política do país. Desde aí se institucionalizaram políticas afirmativas, de inclusão social, de igualdade racial, étnica, de gênero, etc.
Em muito isso se deu também no influxo de, a partir dessas políticas, se revisitar a história do Brasil e retratá-la devidamente, de acordo com as fontes históricas. É quando passa a ganhar mais destaque a noção das consequências do processo colonizador e se coloca em xeque a ideia de “homem cordial”² em face de uma história nacional essencialmente autoritária e de poucos momentos democráticos.
É esse contexto que enseja o pedido de revisão da Lei da Anistia (ADPF 153), culminando no estabelecimento da Comissão Nacional da Verdade. Isso, é claro, assomado aos fatos de que 1) o terceiro mandato petista no Brasil foi liderado por uma presidenta ex-guerrilheira e torturada durante a ditadura; e 2) durante os governos petistas a oposição (ultra)direitista irracionalmente antipetista já ensaiava a ode à ditadura que é o governo atual em face aos pedidos de intervenção militar e retorno do regime ditatorial para combater a corrupção e tirar o PT do poder.
Essa conjuntura figura emoldurada por outra maior, de ordem mundial, que pode ser didaticamente resumida em duas frentes: política e intelectual. A primeira diz respeito a um movimento progressista internacional, que culmina na Onda Rosa na América Latina, bem como na oposição global, que tende ao reacionarismo, de um Trump, de uma Le Penn, de um Orban, de um Bolsonaro, etc. A segunda, de caráter intelectual, a que enseja a consolidação dos Estudos Culturais enquanto corrente de crítica.
O que está dito nos últimos parágrafos, portanto, conforma um mesmo movimento, multidirecional e interligado, uma cena constelar que imprescinde de uma análise mais detalhada e profunda, como a que arriscamos na tese em desenvolvimento.
Mas como os metadados correspondem a tal cena constelar que circunscreve o fluxo de publicações de romances que tematizam a ditadura de 1964?
A quantidade de romances indicia o problema sobre as razões de estarmos às voltas com o tema da ditadura ainda hoje, 60 anos depois. Seja porque a Lei da Anistia não funcionou e precisamos denunciar esse esquecimento, seja porque tivemos uma presidenta ex-guerrilheira que foi politicamente importante para virar os holofotes em direção a história da ditadura contra a qual se opôs, seja pela importância dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, seja pelo cinquentenário do Golpe em 2014, seja pelo golpe de 2016 e o medo de que o passado se repetisse na prática do presente… o fato é que temos 99 romances publicados dos anos 2000 até o presente, sendo que quase 70 deles vieram a público de 2014 até o presente.
A evolução da publicação desses romances no tempo demonstra como os anos de 2014 a 2020 tem uma linha crescente de lançamentos que parecem acusar mais do que as circunstâncias políticas que vivemos hoje, mas também a evocação de uma sociedade que se preocupa mais com a distribuição igualitária do poder de fala, com a representação (literária) mais inclusiva, a despeito do reacionarismo em ronda… Sobretudo, a evolução da publicação desses romances no tempo parece provar como os discursos em circulação podem vir a ser metáfora potente do presente-passado mas também, ambiguamente, mercadoria, na medida que enceta, inevitavelmente, uma oportunidade de lucro no contexto em que o assunto da ditadura está em evidência.
Teriam as editoras, portanto, participado disso politicamente e/ou com interesse no lucro que isso renderia? O incentivo a essas publicações foi político? Foi também econômico? Pensar um retrato das editoras que estão publicando esses romances nos leva a melhor compreender o que está por trás da produção, distribuição e circulação desses romances que estão alimentando os discursos já em circulação ao redor desse tema. É importante entender o porte das editoras que os estão publicando, sua localização, os prêmios que ganharam com os romances publicados porque tudo isso nos diz sobre uma interdição mercadológico-midiática sobre a produção ficcional.
Igualmente, ter no horizonte o perfil dos produtores dessa literatura é importante uma vez que o sujeito é o catalisador e prisma do real a dar forma à realidade interna das obras. A geração a que pertencem enseja uma discussão sobre abordar o que foi vivido ou o que foi recontado, o que afeta o tratamento da matéria pragmática no âmbito da invenção. Olharmos para esses autores que estão escrevendo agora nos faz questionar se existe uma diferença geracional com consequências para a fatura das narrativas atuais em relação aos escritores e narrativas dos períodos anteriores que exploraram a representação da ditadura. Também enseja refletir sobre de que modos os escritores e escritoras de agora (e essa modulação de gênero diz muito por si) ressoam esse presente de que falamos e se esse ressoar gera maneiras novas de narrar a ditadura. Ter no horizonte o sexo de quem produz essa literatura aponta para uma mudança na cena literária, originalmente machista e misógina na marginalização das mulheres que escrevem, que reverbera as políticas e ações sociais do presente que caracterizamos acima e o modo como o mercado entende e se apropria disso. E, novamente, as editoras decidem isso política e financeiramente, o que demonstra como o mercado influi na produção literária em si. A região a que pertencem esses escritores nos diz sobre a desigualdade econômica que regula a organização social do Brasil, fazendo do mercado uma instituição contemporaneamente complexa a funcionar sob as regras de uma divisão social que por vezes retoma o passado.
As obras, produtos literários, são individuais e coletivas, de acordo com o que constitui a sociedade, seus grupos sociais e os modos de apropriação subjetivos de tais constituições culturais. Desse modo, o fluxo de publicações em torno de um tema como o da ditadura militar de 1964 e os metadados que ele gera se dá em consonância com pautas em destaque no falatório sócio-político-midiático, tão entranhado na estruturação coletiva do Brasil atual, demonstrando como, para além da relação autor-público-obra, existem outros tantos fatores e suas nuances que determinam a produção, circulação e recepção da literatura e da ficção.
[1] EVEN-ZOHAR, Itamar. Polisistemas de cultura. Tel Aviv: Universidad de Tel Aviv -Laboratorio de investigación de la cultura, 2017;
[2] HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil (26 ed.). São Paulo, Companhia das Letras, 1995.
Júlia de Mello – mestre e doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da UFSCar, bacharel e licenciada em letras pela Unifal-MG.
CC Júlia de Mello – Núcleo Interdisciplinar Literatura e Sociedade – Unidade Especial de Informação e Memória – Universidade Federal de São Carlos – FAPESP (2019/03937-0)